Cidades mais saneadas


Saneamento exige conhecimento e atingir a universalização deve ser uma meta de todos

Com 18 anos de atuação no saneamento, a diretora-presidente das unidades da Aegea SC espera contribuir ainda mais para o Brasil ter cidades mais saneadas.

Entrevista a Rosiney Bigattão

O saneamento foi uma opção, como foi o início da carreira no setor?

Eu nunca tinha imaginado trabalhar com saneamento, eu advogava para empresas, tinha uma advocacia empresarial já desenvolvida, mas em outras áreas. Eu fui convidada para trabalhar na Prolagos (RJ) em 2003, na área de regulação, quando estava no início no Brasil a regulação de companhias privadas de saneamento que prestam serviços públicos. Quando eu cheguei à Região dos Lagos, vi que o saneamento era um mundo completamente diferente. Estava acontecendo uma transformação no país, porque nós tínhamos a Constituição de 1988, que abria possibilidades da delegação dos serviços ao privado, mas só em 1995 veio uma lei que possibilitou firmar os contratos de saneamento por meio de licitações. Apesar de os contratos já estarem em condições de serem firmados, a fiscalização pelo Poder Público e, consequentemente, essa condição de trazer mais estabilidade à área de saneamento e mais segurança ao empreendedor só aconteceram, no Rio de Janeiro, a partir de 2001. Trabalhar com regulação exige um envolvimento com a companhia como um todo, então eu tive a oportunidade de conhecer como o saneamento se operacionaliza de forma global.

O conhecimento do Direito foi importante nesse processo?

Completamente, quando eu entrei nesta seara eu consegui acompanhar o desenvolvimento da regulação no país. O Rio de Janeiro foi um dos primeiros estados a se engajar e, a partir dessa experiência, passei a entender a concessão e os contratos pelo prisma do fiscalizador também. Eu trabalhava dentro de uma companhia privada, mas atuava em uma agência reguladora que fiscalizava o contrato a mando do contratante, do poder concedente. Iniciei na empresa sabendo o que o Poder Público esperava de uma companhia privada, por conta dos regulamentos e das normas de fiscalização, e isso no Estado do Rio de Janeiro e, em especial na Prolagos, acontecia de uma maneira diferenciada. Eram cinco municípios delegando serviços de saneamento, essa delegação era feita junto com o estado e a fiscalização ficava a cargo de uma regulação estadual, não por uma autarquia, com mais condições de regular. Eram mais de 80 colaboradores que trabalhavam para a fiscalização. A porta de entrada feita pela regulação realmente foi uma oportunidade muito especial, um diferencial que contribui bastante.

Foi uma oportunidade, mas deve ter sido um enorme desafio. Jovem, mulher, em um setor novo. Enfrentou preconceito?

Eu nunca coloquei a questão do gênero como uma dificuldade para avançar. Eu fui educada para desconsiderar as diferenças (risos). Eu me envolvi tanto com o trabalho que eu não considerei essa condição e fui em frente. Naquele momento existiam pouquíssimas mulheres no setor, tudo o que eu aprendi no saneamento foi basicamente com homens. Eu assessorava presidentes competentes e eu me dediquei, me dediquei muito. Fui estudando, me especializando, buscando entender o setor. Aliás, para quem atua presidindo companhias, como nós, entender bem o que o gestor público pode e deve fazer, quais são as limitações dele, é fundamental para que possamos contribuir de forma mais efetiva. Estudar gestão pública, regulação e o mercado de saneamento foi o que eu fiz nesse período, buscando contribuir com o desenvolvimento dele.

É preciso ter uma atuação mais ampla, exigida pelo setor?

Sempre fui além das minhas atribuições, mais do que uma exigência é uma característica minha. Em um dado momento, passei a atuar com os Comitês de Bacias Hidrográficas na Região dos Lagos (RJ) e integrei a Câmara Técnica Institucional e Legal. Daí para o Conselho de Recursos Hídricos foi um passo, o que acabou me fazendo buscar um mestrado na área de Gestão e Regulação dos Recursos Hídricos. Depois me envolvi com a Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto, a Abcon, e por duas vezes fui eleita coordenadora do Comitê de Regulação. Ali eu comecei a ter uma visão sobre como o saneamento funcionava no Brasil para os privados e para os públicos, porque você acaba enxergando o mercado como um todo.

O conhecimento é a ponte para vivenciar essas situações com sucesso?

É um conhecimento que não para. Porque, quando veio a possibilidade de eu exercer uma função de diretoria, já com uma experiência de assessorar vários presidentes extremamente competentes e com os quais eu tive o prazer de conviver, eu busquei conciliar o conhecimento que eu obtive com a prática que eu assisti desses profissionais e mais a contribuição que o Direito me trouxe sobre entendimento de contratos de regulação com visão jurídica. Sempre fazendo muitos cursos. A Aegea cuidou dessa trilha de conhecimento, tive a oportunidade de estudar a parte financeira no Insper, liderança na Fundação Dom Cabral, estudei também negociação, estratégia, enfim, houve um desenvolvimento; a Aegea me propôs, eu abracei com toda a disposição e isso agregou no meu currículo.

Como ter a visão multidisciplinar que o saneamento exige?

Estudando, ouvindo, se relacionando. No Brasil a defasagem é tão grande no setor que esse desafio do que falta fazer ainda é motivador. Olhando para a Aegea, para os valores da companhia, temos muito incentivo, pois para a empresa a melhoria contínua, o trabalho colaborativo, com austeridade para atingir aqueles objetivos, são questões importantes. Com a transparência e o cumprimento das regras de compliance que o mercado exige e a percepção de que com esse trabalho você está contribuindo para o desenvolvimento das comunidades onde a empresa atua se torna fantástico. Isso não é um discurso: você implanta o sistema da Aegea e já começa a monitorar rios, a entregar água de qualidade e pode acompanhar o desenvolvimento da saúde daquela população atendida. É muito real, para mim, que sempre busquei algo muito palpável, é engrandecedor.

Os investimentos sociais e ambientais também fazem parte disso?

A Responsabilidade Social, como vem sendo desenvolvida pela Aegea, permite o desenvolvimento da sociedade como um todo: ficará um legado, com certeza. Programas como o Pioneiros, que ajuda os jovens a encontrar o seu caminho (leia matéria nesta edição) – e quem sabe esse caminho seja o saneamento? É o nosso desejo. Tem ainda o Saúde Nota 10, o Afluentes, Portas Abertas e muitos outros programas, e uma maneira de atuar que é uma postura da companhia que nos faz gostar do lugar onde trabalhamos, faz com que a gente se dedique cada vez mais para contribuir.

O saneamento está vivendo um momento com grandes mudanças?

É um novo momento, que requer profissionais bem preparados e acontece ao mesmo tempo de uma pandemia mundial, que também exige demais. Estamos vivenciando uma situação que exige extrema adaptabilidade. O profissional hoje tem de estar pronto, aberto a mudar o rumo, o caminho, isso faz parte. Cada vez mais estar de malas prontas, mentalmente e fisicamente, tem sido fundamental para a gente conseguir acompanhar este passo. Nós vimos uma mudança muito grande nos últimos dez anos, principalmente nos últimos cinco. Vêm grandes mudanças no setor nos próximos três ou quatro anos, e as mudanças são perceptíveis nos colaboradores, nos serviços. Tudo isso está vindo em um pacote: velocidade na implementação, excelência nos serviços, capacidade de entender o público que a gente atende, muita tecnologia por conta da pandemia, sempre com o propósito de excelência, no caso da Aegea.

O número de municípios quase dobrou de 2020 para 2021; é uma nova Aegea?

A proposta da Aegea de ser reconhecida como a melhor companhia de saneamento do Brasil sempre existiu e agora, além de ser a melhor, já é a maior. A tendência da empresa é continuar crescendo, o que é muito impactante. Mas essa coluna vertebral da Aegea não deve mudar com o crescimento, que é o raciocínio da excelência, a visão do atendimento ao público com qualidade levando saúde, melhorando as condições ambientais, agregando à população a valorização imobiliária tão importante para o desenvolvimento das cidades. É fundamental que a empresa cresça com excelência, com transparência e cada vez mais chegue aos cantos do país que não contam com saneamento ainda. São 35 milhões de brasileiros sem água, mais de 100 milhões sem esgoto tratado, rios poluídos por todo o litoral brasileiro. Temos muito a contribuir. A Aegea tem um grupo de profissionais capacitados para disseminar o conhecimento que tem a outros tantos que vierem, e conseguir manter essa visão de necessidade e de excelência dos serviços.

Uma advogada, lidando com regulação, foi parar no RH. Como foi isso?

Tive a oportunidade de trabalhar como gerente de RH por dois anos e isso também me agregou informações e conhecimentos da área. Foi em 2005, teve uma reestruturação dentro da companhia para que alguns colaboradores, que eles entendiam como chave, assumissem mais responsabilidades e fui convidada para assumir a parte do RH, pois havia muitas normativas, um complexo de normas e eu conversava muito com eles pela parte jurídica. Eles perceberam que eu tinha uma postura de tratativa de Recursos Humanos, apesar de não contar com a especialização. Essa porta que foi aberta me agregou muito e até hoje agrega quando eu lido com colaboradores, com colegas das concessionárias, a visão de desenvolvimento dos colaboradores para que eles assumam mais responsabilidades, para que eles levem a história da companhia adiante, isso eu adquiri nessa experiência; agradeço muito e busco passar para todos eles.

Como foi a passagem para a presidência, no Espírito Santo?

A Aegea já estava mapeando novos colaboradores que pudessem assumir cargos de chefia e eu disse que gostaria de ser preparada para isso, para assumir um cargo dessa magnitude. Quando me chamaram para trabalhar em Serra, que era a segunda PPP, a primeira foi em Piracicaba (SP), sabia que o contexto seria bem diferente. O Espírito Santo conta com uma companhia estadual bastante forte, a Cesan, que naquele momento estabelecia a primeira PPP. Fez a licitação, mas o vencedor não se adaptou ao modelo e decidiu vender, a Aegea comprou e me designou para implantar lá o seu modelo. E naquele momento não havia o diretor-executivo, assumi sozinha, mas recebi o suporte de todas as áreas para que eu pudesse ser bem-sucedida. Cheguei ao ES em dezembro de 2016 e saí de lá em dezembro de 2019. Nesse período passaram por lá dois diretores-executivos, todos agregaram bastante, principalmente com a entrada de Vila Velha. Conseguimos avançar com certificações importantes – foram três no primeiro ano –, a ISO 9001 para Sistemas de Gestão de Qualidade, a ambiental (14001) e a OHSAS, de Saúde e Segurança do Trabalho (18001). Isso foi um diferencial no modelo implementado.

Você foi reconhecida também pela sua atuação, ganhou prêmios. A que se deve o sucesso?

Eu tive sorte de contar com um grupo que sempre me apoiou, uma equipe muito boa, como tenho agora, e o modelo Aegea de pensar o saneamento é o da integração: sempre trabalhamos entendendo que o contratante deve estar junto, que a população, por meio dos seus representantes, trabalhe os objetivos junto conosco, e isso vem sendo feito da forma mais integrada possível – com os órgãos ambientais, com o Poder Público, com as lideranças comunitárias, ouvindo muito a população. A maneira de a Aegea entender o saneamento é esta. Não dá para achar que um sistema vai ser implantado e por si só vai funcionar. Nós temos uma população que precisa entender o que está acontecendo, aceitar o parceiro privado, valorizar esse serviço entendendo o tanto que ele agrega para vir junto conosco. Se há algum diferencial, além das equipes competentes, é esta postura de trabalhar sempre em conjunto.

Existe diferença entre a concessão plena e uma PPP?

São desafios diferentes. Em PPPs a proximidade com a companhia estadual é fundamental, mas estou percebendo que nas concessões plenas funciona muito bem também. Aqui em Santa Catarina, nas três concessionárias, estamos trabalhando da mesma maneira que eu trabalhava nas PPPs do Espírito Santo, bem próximos, e estamos seguindo no mesmo rumo. Porque nas parcerias a companhia estadual é a sua contratante, ela que detém os serviços e tem expertise em saneamento. No Espírito Santo a Cesan é uma companhia reconhecida, premiada, então você precisa trabalhar em parceria com ela, como o próprio nome diz. Você não pode ofuscar o brilho dessa companhia em hipótese nenhuma, e ao mesmo tempo tem de mostrar a que veio, que é um parceiro Aegea, veio agregar e tem capacidade, excelência nos serviços e que há uma razão procedente e positiva para o estado ter tomado a decisão. Nas concessões plenas se tem uma margem maior de trabalho, a possibilidade de deixar a marca da Aegea é mais efetiva, mas o desafio é muito maior, é a concessionária que vai construir o modelo que vai deixar de legado para o município. Nas PPPs a interferência do Poder Público é maior, mas em todos os casos temos de ser espetaculares.

O papel de um diretor-presidente é também o de se relacionar com todos os públicos?

Se na concessão pública nós podemos contar com esse relacionamento de forma contínua, imediata, aprofundada, nas PPPs a atuação junto ao público precisa ser feita em conjunto, alinhada, para não gerar conflitos. Mas, sim, você pode trabalhar com todos os stakeholders. Eventualmente a companhia estadual quer estar presente em todas as reuniões que se faz com o prefeito, por exemplo, mas isso não pode te inibir de se relacionar com o Poder Público. Sempre há uma forma de se relacionar e apresentar a Aegea para todas as partes interessadas.

O Brasil vai conseguir universalizar os serviços nos prazos estipulados?

Eu acredito que nós demos um passo bastante grande com o Marco do Saneamento, mas ainda há um trabalho a ser feito pela Agência Nacional de Águas, ajustes a serem feitos, que dependem das normas e legislações, e há um investimento bastante importante a ser feito. O desafio é muito grande, o investimento também, as modelagens precisam ser feitas, nós temos gargalos no mercado. Que nós vamos avançar eu não tenho dúvidas, já começamos avançando com o Rio de Janeiro, a decisão para mudar aquela realidade toda, são 13 milhões de pessoas. Enfim, são muitos os investimentos, a segurança jurídica precisa ser extremamente clara para o investidor se aproximar e realmente investir nos sistemas e fazer os aportes necessários. Nós temos ajustes a serem feitos na legislação e os passos importantes que a ANA tem de dar com essas normas de referência para que elas realmente atendam o mercado e as expectativas do investidor.

Foi preciso endurecer para conquistar a liderança ou é ao contrário, com mais maleabilidade?

Há momentos em que a gente tem de endurecer; o mercado é competitivo, é desafiador, trabalhamos com muitos investimentos, é preciso alcançar os objetivos. Em toda a negociação você vai ter de demonstrar claramente o seu propósito, quais serão os seus passos para alcançar o objetivo, mas acredito no mix, momentos de suavidade e ternura também fazem parte. A minha geração foi mais submissa, educada para atender a comandos, nós tivemos de mudar isso. Mas tenho sido sempre bem recebida e conseguido ter um relacionamento com os prefeitos, com os diretores, conquistando o espaço necessário para realizar o trabalho que precisa ser feito.

Quais os sonhos, as metas ainda a serem alcançadas?

Eu sempre busco explorar o melhor de mim em tudo o que faço: costumo dizer que é procurar ser a melhor versão da gente. Vendo o saneamento deslanchar como eu tenho visto nos últimos anos fico extremamente feliz. Tem um espaço enorme ainda para todos que se interessam por essa área, nós vamos precisar formar muitos profissionais no setor. Espero contribuir ainda mais e ver esse Brasil em uma condição melhor do que a gente vê hoje. Eu estudei muito sobre recursos hídricos nesses últimos anos e é uma pena contar com um país maravilhoso, com um litoral espetacular e ao mesmo tempo ter os nossos recursos hídricos, principalmente onde tem a maior concentração de população, tão prejudicados. Eu realmente espero contribuir ainda mais para ver cidades mais saneadas, independente do tamanho e local, seja no centro, no sul, no norte, isso tem tudo a ver com saúde da população, longevidade, qualidade de vida. É isso que eu espero: poder contribuir com melhores condições de vida para todos.

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